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quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Entrevista com a Profa. Dra. Maria do Patrocínio Tenório – Secretária Executiva da CNRM



Entrevista com a Profa. Dra. Maria do Patrocínio Tenório
Secretária Executiva da Comissão Nacional de Residência Médica do MEC
Professora Livre-Docente do Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina da USP

1) A residência médica é o melhor tipo de treinamento para o jovem médico que deseja exercer uma especialidade?

Tenho absoluta convicção disso. Dentre os médicos, dirigentes, lideranças e docentes, não resta dúvida que a RM é um sucesso como forma de inserção profissional e especialização, desde que se respeite os objetivos desse segmento de educação, garantindo ao jovem médico conteúdos e estratégias adequadas à aquisição e aprofundamento de conhecimentos, habilidades e atitudes.
2) É comum que os jovens associem um bom programa de residência médica à imagem dos hospitais bem equipados e dos médicos renomados. Quais outros critérios podem ser utilizados para se reconhecer um bom programa de residência?

Excelente pergunta que completa a anterior. É fundamental corpo docente preparado para educação médica, respeito entre todos aqueles que interagem, programação e planejamento de estratégias que visem o treinamento em serviço, sob supervisão adequada, há uma distância segura o suficiente, mas não sufocante, infraestrutura que possibilite adquirir capacitação e competência para atuar nos diferentes níveis de complexidade, conhecendo e vivenciando o sistema de saúde brasileiro, a epidemiologia regional, os custos em saúde, a promoção da saúde e prevenção de agravos, sem perder o foco de tudo isso que é o ser humano a quem devemos servir com zelo, respeito e com o melhor da ciência. A arte e a ciência de ouvir, respeitar, entender e atuar é a mais difícil tarefa do aprendiz e do docente. Muitas vezes esses objetivos são alcançados em ambientes e com pessoas do cotidiano, sem o excesso de tecnologia que secundariza as relações humanas quanto ao renome, resta saber se na prática das relações humanas há também a características já citadas ou apenas o superdesenvolvimento de técnicas e métodos distanciadas das sensibilidades fundamentais à prática médica e à formação de novos colegas.
3) Em uma cidade populosa como São Paulo, muitos especialistas podem se dedicar a realizar apenas um tipo de procedimento, ou podem identificar-se como especialistas em patologias de determinado órgão, ou até mesmo de uma única doença. Para o médico que pretende atuar em um mercado de trabalho com esse perfil, é importante receber toda a formação exigida na graduação e na residência?

O mundo moderno se volta para a necessidade das multicapacidades. Dificilmente, mesmo em centros ultra populosos, um médico conseguirá se dedicar tão concentradamente a um único ou poucos aspectos da prática profissional. Mesmo sendo que assim fosse, ou seja, sem sombra de dúvidas a capacitação, habilidades e atitudes adquiridas na graduação e residência médica são primordiais para o sucesso profissional. É a noção do conjunto que o permitirá se destacar num ponto e não o contrário. Para ser super especializado num procedimento ou mesmo numa condição clínica, sem o conjunto da formação já citada, esse indivíduo ficaria muito restrito em seu campo de ação, incapaz de interagir adequadamente com seus pares e insuficiente para auxiliar os necessitados de seus saberes (limitados). Justamente a ampla vivência prática da medicina em seus níveis de formação é que nos tornam melhores profissionais para a sociedade. A limitação profissional desestimula a dúvida, o interesse pelo aprendizado (necessariamente) diário. Deve ser frustrante para o médico e para o paciente essa limitação, mesmo que represente melhor ganho financeiro, o que aliás é uma perversão! As pessoas deveriam ser remuneradas de acordo com suas potencialidades. Infelizmente, chegamos a um estágio em que fazer um procedimento remunera mais do que a consulta que o gerou.
Agora pensemos quem recruta mais habilidades e raciocínio, aquele que atende, ouve, orienta ou o que simplesmente realiza (com destreza) um procedimento? Uma vez que todos são fundamentais creio que o que está errado é o reconhecimento social, por meio da remuneração.
4) Ainda dentro dessa questão da superespecialização em nosso país, qual a sua opinião sobre o surgimento de novas áreas de atuação e a pressão para expansão dos cursos de residência médica e de novas sociedades de especialistas?

A superespecialização não é o problema em si, desde que não fossem sufocadas as demais habilidades e competências. Mas o maior problema nesse campo é a forma de reconhecimento, valorização e consequente remuneração profissional. A mim parece simples inverter essa lógica, bastando reconhecer, valorizar e, portanto, remunerar muito bem aqueles com capacidade demonstrada para resolver a demanda à sua volta.
Hoje se discute novas "especialidades" e áreas de atuação por motivos variados:
1) pressão da indústria de equipamentos e farmacêutica por meio de uma atividade perniciosa com médicos;
2) má formação dos médicos, que então se sujeitam a várias "verdades" sem questionamentos;
3) o descaso dos médicos para com a sociedade e com a categoria, o que impõe uma lógica capitalista competitiva, sem a compreensão que nossa profissão requer cuidados e cautela suficientes para "se vencer na profissão";
4) a lógica perversa da remuneração no serviço público e no suplementar;
5) a superconcentração de médicos nos grandes centros;
6) a falta de formação crítica e reflexiva, que considere o papel social do médico;
7) a lógica individualista da sociedade;
8) a lógica do ter e não do ser;
9) o conjunto da formação deficitária e remuneração insuficiente. O maior exemplo são os postos de urgência e emergência onde se diagnostica a qualidade discutível do conjunto de médicos que atuam nesse setor. Os bem-qualificados dificilmente permanecerão longo tempo atuando. Para tal pensa-se numa especialização. A meu ver deveríamos modificar o processo de trabalho e remuneração nesse nível de atuação, o que terá muito maior impacto na qualidade do cuidado.
Quanto à duração dos programas de residência médica é interessante notar que se não reelaborarmos os programas (urgentemente) pela lógica das competências, corremos o risco de aumentar a duração de um PRM apenas porque houve um aumento de conhecimento na área ou porque um programa similar possui o dobro do tempo para formar. Deve-se com urgência elaborar as competências de cada área, a partir disso estabelecer o conteúdo e o tempo para se adquirir tais competências, definindo os locais de treinamento e os pré-requisitos do preceptor (docente).
A questão do tempo e da especialização fica menor quando consideradas as competências que se baseiam na segurança do paciente.
5) Quanto ao médico que provém de regiões menos favorecidas economicamente, e que lá pretende permanecer como especialista: vale a pena ingressar em uma residência em centro altamente especializado? Em outras palavras, se ele recebe treinamento em um hospital que dispõe de equipamentos sofisticados e de recursos terapêuticos caros, quão preparado ele estará para atuar em um cenário menos favorecido?

Caso o médico esteja preparado para o cuidado nos diversos níveis de atenção tudo o que aprendeu será fundamental à sua prática e atitude. Se os equipamentos sofisticados e os recursos terapêuticos são epidemiologicamente necessários àquela localidade, deve-se buscá-los. Isso é papel do médico! Modificar a realidade, embora seja duro, tendo por argumento a epidemiologia e qualidade de vida. Entretanto, não se pode querer esse arsenal apenas por ser a única coisa que se sabe fazer, sem nenhum respaldo na realidade.
Na verdade há que haver responsabilidade para com a sociedade, sendo que devemos preparar apenas e tão somente aqueles super especialistas necessários para as demandas epidemiológicas da população. Por vezes, em situações de ocorrências de baixa frequência é mais vantajoso levar o paciente (e sua família) ao centro preparado para atendê-lo, do que instalar infraestrutura que ficará subutilizada ou para qual se procurará "criar" demanda. Penso que assim, aos poucos vamos equilibrando as diferenças regionais.
6) É comum que os grandes hospitais do eixo sul-sudeste recebam inúmeros estagiários. Entretanto, os residentes destes centros dificilmente visitam outras realidades. Na sua opinião, seria produtivo promover intercâmbios de duas mãos entre os residentes de regiões distintas do país?

Certamente as limitações nunca são produtivas. Conhecer outras realidades traz benefícios a todos. Preconceitos são desfeitos, novas oportunidades surgem.
Num país tão diverso e rico, penso que esses intercâmbios possibilitariam crescimento pessoal e profissional. Reconhecer e respeitar a diversidade seria apenas um dos valores a ser agregado. Nenhuma região deixaria de ter algo a acrescentar, pelo que já vi no Brasil. Penso que muitos se surpreenderiam com a versatilidade e competência de outros tantos, com a qualidade de vida do profissional em detrimento da grandiosidade regional, etc.
7) Todo residente de gastroenterologia que conclui seu programa reconhecido pelo MEC com boas notas nas avaliações trimestrais recebe o título de especialista. Porém, ele ainda precisa ser aprovado na prova da FBG para ter o título da sociedade. Avaliações periódicas por bancas compostas de preceptores externos ou provas práticas poderiam melhorar a formação do especialista?

O Brasil reconhece e respeita duas formas de titulação: aquela adquirida pela RM e pelas provas de título das sociedades de especialidades. Tanto uma como a outra precisam aprimorar-se.
Durante a residência médica deve-se desenvolver melhor o sentido e o objetivo da avaliação que não é verificação e que não deve se restringir a conhecimentos, mas a análise de habilidades e atitudes. Provas são parte de um processo ao qual se deve somar avaliações sistemáticas do residente em suas atividades habituais em ambulatórios, centros cirúrgicos, enfermarias, etc. Basta para tal desenvolver instrumentos padronizados de observação, instituir e aprimorar esses meios, capacitar docentes para novas práticas.
A titulação pela sociedade deve ser diferenciada para os egressos de PRM daqueles que não a fizeram, cabendo no meu entender avaliações múltiplas e sequenciais para melhor titular. Imagino que um dia conseguiremos titular a um só tempo o egresso da RM.
8) A indústria farmacêutica e outros patrocinadores privados podem ter papel positivo na formação do especialista? 

A indústria citada tem por papel vender seus produtos. Na medida em que esses produtos tragam benefícios para a assistência médica, creio que resultam em impacto positivo na formação de especialistas.
Agora, pela natureza de função (vender) penso que esse papel deve ser indireto, mediado por pessoas com formação e maturidade suficientes para mostrar os benefícios e os limites de cada procedimento, aparelho e droga.
A relação perniciosa (agrados) com jovens médicos pode ser perigosa fazendo com que as pessoas deixem de analisar a real necessidade de uma droga, o custo e benefício de um instrumento, a segurança de um velho medicamento, à despeito de seus efeitos colaterais já conhecidos, etc.
9) Qual a sua opinião sobre o envolvimento de médicos residentes em projetos de pesquisa e em publicações científicas?

A pesquisa científica desenvolve o espírito crítico. Se esse for o objetivo e não competir com as demais competências a serem adquiridas, penso que é muito bem-vinda. Agora, RM é para aquisição de conhecimentos, habilidades e atitudes em serviço e não para produção de papers. O médico deve ser formado com senso crítico científico e para atuar como profissional. Alguns (poucos) seguirão o caminho da pesquisa por meio da pós-graduação senso estrito. Durante a RM, clubes de revista, sistematização de atendimentos, cursos teórico-práticos de bioestatística, epidemiologia serão capitais para aquisição da habilidade de aprender sempre. Assim como a residência médica é aprendizagem em serviço e não só serviço, também a pesquisa e publicação não devem ser o objetivo principal da pesquisa científica durante a RM. O ideal é desenvolver os temas citados de forma prática e no último ano, quando desejado pelo residente, iniciar um projeto de pesquisa. Sei que há colegas que conseguem desenvolver muito bem todos esses aspectos simultaneamente, mas são raros.
10) O Projeto Jovem Gastro busca aproximar o residente da nossa área para a Federação Brasileira de Gastroenterologia (FBG). Na sua visão, de que maneiras a FBG pode contribuir para melhorar os programas de residência da nossa especialidade no país? E como o residente pode atuar na FBG para que a sua formação seja o mais adequada possível?

Os residentes devem participar com análises críticas de seus programas, apontando os pontos positivos e negativos,justificando-os. Podem ainda contextualizar o treinamento que recebem com o que pretendem fazer. Precisam se apropriar do sistema de saúde, saber as oportunidades de trabalho, sem querer apenas reproduzir o que as outras gerações fizeram.
A FBG e outras sociedades de especialidades poderiam auxiliar muito, elaborando as competências por área, fazendo estudos de egressos e ainda, em conjunto com a autoridades em saúde, mostrando o contexto prático atual e nos próximos dez anos para área.

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